As transformações sociais ocorridas ao longo da última década criaram diversos desafios para o Direito, em especial no que diz respeito à tutela de tecnologias até então inexistentes, e das formas de exploração de tais tecnologias.
Dentro deste cenário, o ordenamento jurídico brasileiro mostra-se pouco preparado para enfrentar os desafios criados pela rápida evolução das relações sociais verificada nos últimos anos.
Uma das questões que ganhou relevância neste período é a tutela dos direitos sobre bens digitais, como perfis de rede sociais explorados com finalidade econômica.
Hoje é inegável que diversas pessoas exploram as redes sociais com visão ao lucro, haja visto o impacto de influenciadores de publicidade e produção de conteúdo virtual, e a utilização, cada vez mais frequente de tais influenciadores em estratégias de marketing elaboradas por empresas de todos os portes.
Conforme pesquisa realizada pela Nielsen, em 2022, o país contava aproximadamente 500.000 influenciadores com mais de 10.000 seguidores em diversas plataformas digitais , deixando claro que tais plataformas possuem substância econômica que merece ser tutelada pelo direito brasileiro.
Paralelamente, tais plataformas também são utilizadas por ampla parcela da sociedade, sem o intuito de exploração econômica, servindo apenas como acervo de informações e documentos armazenados em ambiente digital, como fotos, vídeos, e outros documentos.
A este respeito, questões relativas à transmissão desses bens digitais após a morte do titular tornou-se cada vez mais relevante, sendo tema de destaque nos debates jurídicos recentes.
De tal sorte é necessário diferenciar o tratamento jurídico guardado a cada uma das situações acima especificadas, tendo em vista que ambas possuem particularidades específicas que impactam o direito de diversas formas.
Como sabemos, a tradição jurídica brasileira é baseada no civil law, modelo em que a norma escrita possui ampla preponderância na tomada de decisões do Poder Judiciário, e na aplicação do direito aos casos concretos verificados na vida dos brasileiros.
Neste contexto, o anteprojeto de reforma do Código Civil em trâmite no Congresso Nacional, busca atualizar o ordenamento jurídico brasileiro a esta nova realidade das relações sociais. Para tanto, o anteprojeto segue o entendimento mais recente dos tribunais brasileiros, propondo uma classificação dos bens digitais e estabelecendo diretrizes para sua sucessão.
O texto do anteprojeto propõe que os bens digitais sejam classificados em: i) patrimoniais (bens com conteúdo econômico e explorados pelo titular visando o lucro); ii) existenciais (relativos aos direitos de personalidade do titular); e iii) híbridos (bens que combinem aspectos tanto existenciais quanto patrimoniais).
Da mesma forma, o anteprojeto sinaliza que em caso de sucessão causa mortis, os bens digitais patrimoniais e os aspectos patrimoniais dos bens híbridos seriam transmitidos aos herdeiros do falecido, conforme os quinhões hereditário previstos em lei ou em disposição testamentária.
Já os bens digitais existenciais e os aspectos existenciais dos bens híbridos seriam passíveis de transmissão apenas em caso de disposição testamentária, assim respeitando a vontade declarada do titular, desde que compatível com o ordenamento jurídico e com a proteção à dignidade da pessoa humana.
A seguir, apresentamos os principais artigos propostos na reforma do Código Civil a respeito do tema ora discutido:
Art. 1.791-A. Os bens digitais do falecido, de valor economicamente apreciável, integram a sua herança.
§ 1º Compreende-se como bens digitais o patrimônio intangível do falecido, abrangendo, entre outros, senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos, arquivos de outra natureza, pontuação em programas de recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual, de titularidade do autor da herança.
§ 2º Os direitos da personalidade e a eficácia civil dos direitos que se projetam após a morte e não possuam conteúdo econômico, tais como a privacidade, a intimidade, a imagem, o nome, a honra, os dados pessoais, entre outros, observarão o disposto em lei especial e no Capítulo II do Título I do Livro I da Parte Geral, bem como no Livro de Direito Civil Digital.
§ 3º São nulas de pleno direito quaisquer cláusulas contratuais voltadas a restringir os poderes da pessoa de dispor sobre os próprios dados, salvo aqueles que, por sua natureza, estrutura e função tiverem limites de uso, de fruição ou de disposição.
Art. 1.791-B. Salvo expressa disposição de última vontade e preservado o sigilo das comunicações, as mensagens privadas do autor da herança difundidas ou armazenadas em ambiente virtual não podem ser acessadas por seus herdeiros.
§ 1º O compartilhamento de senhas ou de outras formas para acesso a contas pessoais será equiparado a disposições negociais ou de última vontade, para fins de acesso dos sucessores do autor da herança.
§ 2º Por autorização judicial, o herdeiro poderá ter acesso às mensagens privadas do autor da herança, quando demonstrar que, por seu conteúdo, tem interesse próprio, pessoal ou econômico de conhecê-las.
Art. 1.791-C. Cabe ao inventariante, ou a qualquer herdeiro, comunicar ao juízo do inventário, ou fazer constar da escritura de inventário extrajudicial, a existência de bens de titularidade digital do sucedido, informando, também, os elementos de identificação da entidade controladora da operação da plataforma.
§ 1º Sendo extrajudicial o inventário, não serão praticados atos de disposição dos bens digitais até a lavratura da escritura de partilha, permitindo-se ao inventariante nomeado o acesso às informações necessárias em poder da entidade controladora.
§ 2º A escritura ou o formal de partilha constituem título hábil à regularização da titularidade dos bens digitais junto às respectivas entidades controladoras das plataformas.
Como já explicado, em vista da crescente relevância dos bens digitais nas relações jurídicas e sociais, é necessária a atualização da legislação brasileira no tocante à sucessão patrimonial de bens digitais.
A reforma do Código Civil brasileiro busca endereçar essa necessidade, classificando os bens digitais e estabelecendo diretrizes claras para sua transmissão. Ao equilibrar a proteção dos direitos de personalidade e o reconhecimento do valor econômico desses ativos, a reforma visa proporcionar segurança jurídica e refletir as transformações sociais e tecnológicas atuais, garantindo uma herança digital justa e adequada.
Em caso de dúvidas a respeito das regras aplicáveis à sucessão patrimonial, seja de bens digitais ou não, o Righetti e Cirino se coloca à disposição para prestar os esclarecimentos necessários a respeito do tema e lhes apoiar na elaboração de um planejamento sucessório seguro e eficaz.
¹ Pesquisa revela que Brasil é o país dos influenciadores digitais. Disponível em: https://veja.abril.com.br/comportamento/pesquisa-revela-que-o-brasil-e-o-pais-dos-influenciadores-digitaishttps://veja.abril.com.br/comportamento/pesquisa-revela-que-o-brasil-e-o-pais-dos-influenciadores-digitais